
Em março de 2025, a missão Euclid – o novo telescópio espacial da Agência Espacial Europeia (ESA) – liberou seu primeiro tesouro de dados científico ao público, incluindo imagens impressionantes de campos profundos do universo (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields). Nessa prévia inicial, o Euclid mapeou 26 milhões de galáxias de diversas formas e tamanhos, algumas delas situadas a mais de 10 bilhões de anos-luz de distância (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields). Esse primeiro lote de dados marca o início de uma ambiciosa jornada para desvendar mistérios da energia escura e da matéria escura, componentes invisíveis que compõem cerca de 95% do cosmos e que influenciam diretamente a expansão e a estrutura do universo. Com linguagem acessível e rigor científico, este artigo explora o que é o telescópio Euclid, seus objetivos, os resultados divulgados e a importância desses campos profundos para a cosmologia moderna.
O telescópio Euclid e a missão do “universo escuro”
O Euclid é um telescópio espacial lançado em julho de 2023 pela ESA, com contribuições da NASA e de instituições de mais de 15 países (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields). Seu nome homenageia o matemático grego Euclides (considerado o “pai da geometria”), refletindo a missão de mapear com precisão geométrica a estrutura do universo. Orbitando o Sol em torno do ponto de Lagrange L2 (cerca de 1,5 milhão de km da Terra), o Euclid iniciou suas observações científicas de rotina em fevereiro de 2024 (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields). Diferentemente de telescópios como o Hubble ou o James Webb, projetados para observar pequenas áreas com altíssima resolução, o Euclid foi otimizado como um observatório de grande campo de visão, capaz de cobrir áreas vastas do céu com alta resolução e sensibilidade. Como descreve Carole Mundell, diretora de Ciência da ESA, “o Euclid não é apenas um detetive do universo escuro, é também uma máquina do tempo. Vamos olhar 10 bilhões de anos no passado cósmico” (Euclid space telescope’s 1st results reveal ‘a goldmine of data’ in search for dark matter and dark energy (images, video) | Space), investigando a evolução das galáxias e do próprio universo.
O objetivo principal do Euclid é enfrentar duas das maiores questões da cosmologia atual: a natureza da matéria escura e da energia escura. Esses termos se referem, respectivamente, a uma forma invisível de matéria que permeia o cosmos (detectável apenas por sua gravidade) e a uma força misteriosa responsável pela aceleração da expansão do universo. Sabe-se hoje que toda a matéria “comum” – estrelas, planetas, gás, poeira e até nós mesmos – corresponde a apenas cerca de 5% do conteúdo total do universo (Euclid space telescope’s 1st results reveal ‘a goldmine of data’ in search for dark matter and dark energy (images, video) | Space). Os 95% restantes são “escuros” e desconhecidos (Euclid space telescope’s 1st results reveal ‘a goldmine of data’ in search for dark matter and dark energy (images, video) | Space), sendo aproximadamente 27% matéria escura e 68% energia escura (Euclid mission data release is step toward grand atlas of the cosmos | Reuters). Para investigar esses componentes enigmáticos, o Euclid foi concebido como uma espécie de mapa tridimensional do universo: ao registrar bilhões de galáxias em diferentes épocas cósmicas, ele permitirá traçar a distribuição da matéria ao longo do tempo e do espaço, revelando como a gravidade (influenciada pela matéria escura) e a expansão cósmica (impulsionada pela energia escura) moldaram a teia cósmica de galáxias.
Tecnicamente, o telescópio Euclid possui um espelho primário de 1,2 metro de diâmetro acoplado a dois instrumentos principais. O primeiro é a câmera VIS (Visible Instrument), com incríveis 600 megapixels de resolução, responsável por imagens de altíssima definição no espectro visível (Astronomers just found a new treasure trove of galaxies. They could help answer our biggest questions.) (Astronomers just found a new treasure trove of galaxies. They could help answer our biggest questions.). O segundo é o NISP (Near-Infrared Spectrometer and Photometer), um sensor infravermelho capaz de medir distâncias de galáxias por meio de seu desvio para o vermelho (redshift) e obter informações espectrais (Astronomers just found a new treasure trove of galaxies. They could help answer our biggest questions.). Juntos, esses instrumentos dão ao Euclid uma combinação inédita de campo de visão amplo, alta resolução e sensibilidade – atributos que geralmente não estão presentes simultaneamente em telescópios anteriores (Astronomers just found a new treasure trove of galaxies. They could help answer our biggest questions.). Essa configuração única torna o Euclid especialmente apto a catalogar um número sem precedentes de galáxias distantes e detectar sutis distorções em suas formas causadas por efeitos gravitacionais.
Primeira liberação de dados: uma prévia dos campos profundos do universo
Depois de alguns meses de observações, a colaboração Euclid anunciou em 19 de março de 2025 sua primeira liberação de dados (Euclid Quick Release 1) (Press Release: Euclid Quick Data Release 1 – Euclid Consortium). Essa divulgação inicial – considerada um release “rápido” – teve como objetivo demonstrar a qualidade dos dados e permitir que cientistas do mundo todo comecem a desenvolver e testar suas ferramentas de análise com informações reais do Euclid (ESA Previews Euclid Mission’s Deep View of ‘Dark Universe’ – NASA). Foram apresentadas imagens de três regiões específicas do céu, denominadas campos profundos, totalizando 63,1 graus quadrados de área coberta (Press Release: Euclid Quick Data Release 1 – Euclid Consortium). Isso equivale a uma porção do firmamento 300 vezes maior que a área da Lua cheia vista da Terra (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields). Apesar de representar apenas cerca de 0,5% do levantamento final planejado (que abrangerá 14 mil graus², aproximadamente um terço de todo o céu) (Press Release: Euclid Quick Data Release 1 – Euclid Consortium) (Euclid mission data release is step toward grand atlas of the cosmos | Reuters), esse primeiro conjunto de dados já revelou uma riqueza impressionante de informações sobre o cosmos distante.
Essa primeira liberação concentrou-se especialmente nos campos profundos do Euclid, que são áreas selecionadas do céu onde o telescópio fará observações repetidas e prolongadas ao longo da missão. Em apenas uma semana de observações nesses campos (uma varredura inicial em cada região), o Euclid já reuniu os 26 milhões de galáxias mencionados (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields). Para se ter ideia, a galáxia mais distante nessa leva de dados está a cerca de 10,5 bilhões de anos-luz de nós (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields) – ou seja, sua luz iniciou a viagem quando o universo tinha menos de 4 bilhões de anos de idade. Além das galáxias, os campos profundos já registraram diversos quasares (núcleos de galáxias ativas extremamente brilhantes alimentados por buracos negros supermassivos) a distâncias ainda maiores (Euclid space telescope’s 1st results reveal ‘a goldmine of data’ in search for dark matter and dark energy (images, video) | Space), bem como alguns fenômenos transitórios, como supernovas, que foram capturados durante as exposições (Euclid mission data release is step toward grand atlas of the cosmos | Reuters).
(Press Release: Euclid Quick Data Release 1 – Euclid Consortium) Uma das imagens da primeira liberação de dados do Euclid revela um denso campo de galáxias em um dos campos profundos observados. Nela, vemos galáxias de diferentes tamanhos, formatos e cores espalhadas pelo fundo negro do cosmos – desde espirais bem definidas (como a que se destaca na parte inferior) até borrões distantes que mal podem ser discernidos. Diversos pontos alongados e arcos tênues também aparecem, indicativos de efeitos de lente gravitacional produzidos por aglomerados de galáxias massivos ao distorcer a luz de objetos ainda mais distantes. As estrelas da Via Láctea em primeiro plano surgem como pontos brilhantes com spikes de difração. Essa cena fascinante exemplifica a riqueza de detalhes cosmológicos que o Euclid pode capturar mesmo em uma fração minúscula do céu.
O que são os “campos profundos” e por que eles importam?
Os campos profundos do Euclid correspondem a três áreas específicas do céu – denominadas Euclid Deep Field North, Deep Field South e Deep Field Fornax – escolhidas para serem investigadas com observações muito mais prolongadas que o resto do levantamento. A estratégia é semelhante à empregada em famosos deep fields do passado, como o Hubble Deep Field (1995) e o Hubble Ultra Deep Field (2004), que revelaram miríades de galáxias tênues ao apontar o Telescópio Hubble para uma região aparentemente vazia e acumular luz por muitos dias. No caso do Euclid, cada campo profundo será reobservado entre 30 e 50 vezes ao longo dos 6 anos de missão, ganhando profundidade a cada nova varredura (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields). Com essa técnica, ao final da missão (por volta de 2030), espera-se que esses campos se tornem verdadeiramente “profundos”, contendo uma quantidade colossal de galáxias muito distantes e permitindo enxergar mais longe no tempo do que nunca.
Por que dedicar tanto tempo a umas poucas áreas? A razão é que os campos profundos funcionam como janelas para o universo primordial. Ao coletar a luz de objetos extremamente tênues e remotos, o Euclid estará observando galáxias formadas há 10 ou 11 bilhões de anos, próximo à época em que a expansão do universo começou a acelerar. Assim, essas observações profundas fornecem dados cruciais sobre como as primeiras galáxias se formaram e evoluíram e sobre a distribuição da matéria em larga escala no passado distante. Além disso, servem como referência para calibrar e validar os resultados do levantamento amplo (wide survey) do Euclid: ao comparar regiões rasas e profundas, os cientistas podem estimar quantas galáxias podem estar “faltando” nas áreas de observação única e ajustar modelos de evolução galáctica.
Os campos profundos do Euclid também foram estrategicamente escolhidos em partes do céu com mínima interferência da nossa galáxia e sobreposição com levantamentos de outros observatórios. Por exemplo, o Euclid Deep Field North localiza-se próximo ao polo norte eclíptico, na constelação do Dragão (Draco), numa região com baixa densidade de estrelas da Via Láctea e que coincide com um campo profundo previamente estudado pelo telescópio espacial infravermelho Spitzer (ESA – Euclid Deep Field North – preview). Já o campo Deep Field Fornax fica em direção à constelação de Fornax (Fornalha), e o Deep Field South em direção oposta, próximo ao polo sul galáctico. Essa distribuição permite que o Euclid observe pelo máximo de tempo possível durante o ano e complemente dados de outros grandes projetos de mapeamento do céu.
Mesmo com uma primeira olhada modesta de 63 graus², os campos profundos já oferecem pistas do desenho da teia cósmica onde as galáxias se organizam. Nas imagens, é possível discernir aglomerados e filamentos de galáxias interligados – o que os cosmólogos chamam de web cósmica – entremeados por grandes regiões vazias chamadas vazios (voids) (Euclid mission data release is step toward grand atlas of the cosmos | Reuters). Essa estrutura de “espuma cósmica”, com galáxias alinhadas como se estivessem nas superfícies de bolhas gigantes, reflete a distribuição subjacente da matéria escura no universo (Euclid mission data release is step toward grand atlas of the cosmos | Reuters). Conforme destaca o Dr. Chris Duffy, astrofísico da Universidade de Lancaster envolvido no projeto, o Euclid está explorando regiões distantes do universo cobrindo uma porção de céu maior do que qualquer levantamento anterior conseguiu para objetos tão longínquos (Euclid mission data release is step toward grand atlas of the cosmos | Reuters). Ou seja, os campos profundos do Euclid aliam profundidade e abrangência, algo fundamental para mapear com precisão a evolução das estruturas cósmicas.
Galáxias, lentes gravitacionais e IA: descobertas iniciais do Euclid
Além das imagens de tirar o fôlego, o primeiro lote de dados do Euclid já trouxe resultados científicos concretos em várias frentes. Um dos destaques foi a criação de um catálogo preliminar de 380 mil galáxias com classificação de suas formas e estruturas (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields). Esse catálogo representa apenas 0,4% do volume total de galáxias que o Euclid irá catalogar com qualidade similar, mas já é o suficiente para superar em uma ordem de magnitude o número de galáxias com morfologia detalhada conhecida em levantamentos anteriores (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields). As galáxias foram classificadas conforme características como presença de braços espirais, barras centrais, halos difusos ou caudas de maré (indícios de fusões entre galáxias). Cada galáxia conta uma história – por exemplo, braços espirais bem definidos podem indicar uma galáxia em pleno ciclo de formação estelar, enquanto galáxias com caudas alongadas sugerem encontros e interações gravitacionais violentas.
Para realizar essa tarefa hercúlea de organizar centenas de milhares (e futuramente bilhões) de galáxias, a missão Euclid está combinando o melhor de inteligência artificial (IA) e ciência cidadã. Algoritmos avançados de deep learning foram treinados em conjunto com voluntários humanos para reconhecer padrões visuais nas imagens. Em uma iniciativa realizada em parceria com o projeto Galaxy Zoo, cerca de 10 mil voluntários participaram de uma campanha intensiva de um mês, no final de 2024, classificando imagens de galáxias do Euclid e ajudando a ensinar a IA a identificá-las (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields). O resultado desse esforço colaborativo é um algoritmo apelidado Zoobot, capaz de reconhecer automaticamente as morfologias galácticas com alta acurácia (Astronomers just found a new treasure trove of galaxies. They could help answer our biggest questions.) (Astronomers just found a new treasure trove of galaxies. They could help answer our biggest questions.). Segundo Mike Walmsley, cientista da colaboração Euclid na Universidade de Toronto, sem a ajuda da IA levaria cerca de 150 anos para astrônomos analisarem manualmente todas as galáxias apenas desse primeiro conjunto de imagens (Astronomers just found a new treasure trove of galaxies. They could help answer our biggest questions.). Com o Zoobot, foram 380 mil galáxias catalogadas em questão de semanas (Astronomers just found a new treasure trove of galaxies. They could help answer our biggest questions.). E esse é apenas o primeiro passo rumo ao que será o maior catálogo de morfologia de galáxias da história quando o Euclid concluir sua missão (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields). Esse avanço permitirá estudar, por exemplo, como se formam os braços espirais, ou como buracos negros supermassivos influenciam a estrutura galáctica, em uma amostra vastamente superior a tudo que já tivemos (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields).
Outra frente empolgante das descobertas iniciais envolve a detecção de lentes gravitacionais fortes. De acordo com a relatividade geral de Einstein, a gravidade de objetos massivos pode curvar o espaço e desviar os raios de luz, atuando como uma lente. Quando uma galáxia muito massiva (com um halo robusto de matéria escura) se alinha quase perfeitamente à frente de outra galáxia distante, a luz da galáxia de trás é distorcida em arcos brilhantes ou até anéis completos, chamados anéis de Einstein (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields) (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields). Esses casos de lente gravitacional forte são raros, mas preciosos: funcionam como “laboratórios naturais” para estimar a quantidade de matéria escura nas galáxias de primeiro plano (pois a forma e intensidade da lente dependem da massa invisível presente) (Astronomers just found a new treasure trove of galaxies. They could help answer our biggest questions.). Antes do Euclid, em várias décadas de buscas, os astrônomos haviam identificado cerca de 1.000 lentes gravitacionais fortes no céu (Astronomers just found a new treasure trove of galaxies. They could help answer our biggest questions.). O Euclid, apenas em sua varredura inicial, já detectou aproximadamente 500 novas lentes candidatas de galáxia contra galáxia (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields) – quase todas elas sistemas inéditos que nunca haviam sido vistos (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields). Isso deixou a comunidade científica extasiada. “Em poucos dias, o Euclid aparece e encontra 500, assim, de cara. É de explodir a cabeça,” comentou Adam Amara, cientista do projeto (Astronomers just found a new treasure trove of galaxies. They could help answer our biggest questions.) (Astronomers just found a new treasure trove of galaxies. They could help answer our biggest questions.).
Um exemplo notável é a descoberta de um belo anel de Einstein formado ao redor da galáxia NGC 6505, a aproximadamente 590 milhões de anos-luz da Terra (ESA – Euclid Deep Field North – preview). Durante a fase de testes em setembro de 2023, o Euclid capturou a imagem dessa galáxia e, ao inspecioná-la, os cientistas notaram um anel fino de luz circundando o núcleo – trata-se da luz de uma galáxia ainda mais distante (a 4,4 bilhões de anos-luz) deformada pela gravidade de NGC 6505 (Astronomers just found a new treasure trove of galaxies. They could help answer our biggest questions.). Essa foi a primeira lente gravitacional descoberta pelo Euclid, já nos primeiros meses da missão, demonstrando seu potencial como uma poderosa “máquina de descobertas” para esse tipo de fenômeno. Com a ajuda de algoritmos de IA para varrer as imagens e identificar padrões de arco, e posteriormente validação por astrônomos através de inspeção visual e modelagem, espera-se que o Euclid encontre cerca de 10^5 (100 mil) lentes gravitacionais fortes até o fim da missão (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields) (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields) – cem vezes mais do que conhecemos atualmente. De fato, nenhum outro instrumento na história esteve tão bem equipado para detectar essas lentes raras em larga escala (Euclid mission data release is step toward grand atlas of the cosmos | Reuters). Como ressaltou Walmsley, “o Euclid é o melhor instrumento já construído para encontrar essas lentes, porque ele consegue tirar imagens excepcionalmente nítidas de grandes áreas do céu – enquanto telescópios como o Hubble e o James Webb foram projetados para olhar áreas muito menores” (Euclid mission data release is step toward grand atlas of the cosmos | Reuters).
Vale notar que os dados do Euclid também têm aplicações além da busca pela matéria escura e energia escura. Por exemplo, a detecção de milhares de supernovas distantes ao longo do levantamento (objetos transitórios que o Euclid pode flagrar em campos repetidos) pode ajudar a calibrar distâncias cósmicas e entender melhor a expansão acelerada (pois as supernovas tipo Ia são usadas como “velas-padrão”). Os aglomerados de galáxias identificados – alguns já visíveis nas primeiras imagens – fornecem pistas sobre a formação de estruturas massivas e podem ser comparados com observações de raios X (que revelam gás quente intraglomerado) para estudar o equilíbrio de matéria bariônica e matéria escura nesses sistemas. Até mesmo objetos da Via Láctea aparecem: no campo profundo do norte, o Euclid registrou a famosa Nebulosa do Olho de Gato (NGC 6543) brilhando a ~3000 anos-luz de distância (ESA – Euclid Deep Field North – preview), mostrando que apesar de focado no universo extragaláctico, o telescópio também pode contribuir para a astronomia estelar e galáctica local.
Desvendando a energia escura e a cosmologia moderna
Todas essas descobertas iniciais, por mais fascinantes que sejam por si sós, têm um propósito maior dentro da missão Euclid: pavimentar o caminho para enfrentar perguntas fundamentais da cosmologia moderna. Em especial, o Euclid foi projetado para investigar como a estrutura em grande escala do universo evoluiu sob a influência da energia escura. A energia escura foi inferida no final dos anos 1990 a partir da observação de supernovas distantes que indicaram uma expansão acelerada do universo – uma descoberta surpreendente que rendeu o Prêmio Nobel de 2011 em Física. Até hoje, pouco sabemos sobre essa força: seria uma propriedade intrínseca do espaço (a constante cosmológica de Einstein) ou algo que varia com o tempo? Há indícios, ainda inconclusivos, de que a energia escura possa estar “enfraquecendo” levemente ao longo de bilhões de anos (Astronomers just found a new treasure trove of galaxies. They could help answer our biggest questions.), mas são necessárias medições muito mais precisas para confirmar qualquer evolução.
O Euclid abordará essa questão de maneira indireta porém poderosa. Em vez de medir diretamente a energia escura (o que não é possível com a física atual), ele mapeará com extrema precisão a distribuição de galáxias e matéria escura no cosmos e acompanhará o crescimento das estruturas ao longo do tempo cósmico (ESA Previews Euclid Mission’s Deep View of ‘Dark Universe’ – NASA) (ESA Previews Euclid Mission’s Deep View of ‘Dark Universe’ – NASA). Duas técnicas cosmológicas serão cruciais nisso:
- Lente gravitacional fraca: Diferentemente das lentes fortes (raras, mas visualmente chamativas), a maioria das galáxias de fundo têm sua imagem sutilmente distorcida pela teia de matéria (escura e normal) que está entre elas e nós. Essas distorções minúsculas – alongamentos ou compressões leves na forma aparente de cada galáxia – não são perceptíveis individualmente, mas estatisticamente revelam padrões quando analisamos milhões de galáxias. O Euclid, ao medir formas de bilhões de galáxias ao longo de 10 bilhões de anos de história cósmica (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields) (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields), fornecerá o mapa 3D mais detalhado já feito da matéria escura no universo. Esse mapa permitirá ver como os filamentos da teia cósmica cresceram ou mudaram de forma em diferentes épocas, o que está intimamente ligado à influência da energia escura (uma energia escura mais forte abafaria o crescimento das estruturas devido à expansão acelerada, enquanto uma mais fraca ou ausente permitiria um colapso gravitacional mais vigoroso).
- Distribuição espacial de galáxias (estrutura em grande escala): Além de lentes, o padrão de distribuição das galáxias por si só traz informações cosmológicas. Existem os chamados Oscilações Acústicas de Bárions (BAO) – basicamente “ondas fósseis” do início do universo que deixaram um padrão rítmico sutil na disposição das galáxias a centenas de milhões de anos-luz de distância. Medindo a escala das BAOs em diferentes distâncias (tempos), os cientistas podem inferir como o universo se expandiu. O Euclid, mapeando um volume imenso, poderá detectar variações nesse padrão com grande precisão. Também permitirá testar a gravidade em escalas cosmológicas: a teoria da relatividade geral prevê certa distribuição de estruturas; se o Euclid encontrar desvios significativos, isso poderia sinalizar física além do modelo padrão, talvez indicando que a aceleração cósmica não é devida a uma energia escura misteriosa, mas quem sabe a uma modificação da gravidade em grandes escalas.
Em resumo, o Euclid atuará como um sensível observatório de consequências da energia escura. Conforme explica Valeria Pettorino, cientista de projeto do Euclid na ESA, é realmente a combinação das medições de forma das galáxias (via lenteamento) e distâncias das galáxias (via espectroscopia/fotometria infravermelha) que permitirá testar a física da energia escura (Astronomers just found a new treasure trove of galaxies. They could help answer our biggest questions.). Com os dados completos, os cosmólogos poderão restringir parâmetros como a equação de estado da energia escura (a relação entre sua pressão e densidade) e verificar se ela se comporta como a constante cosmológica (valor fixo) ou se muda com o tempo. Igualmente importante, o Euclid ajudará a esclarecer o papel da matéria escura na formação de estruturas: ao mapear a matéria escura via lentes gravitacionais, aprenderemos mais sobre como essa substância invisível está distribuída nas galáxias e aglomerados, e se ela se encaixa nas previsões do modelo de partículas elementares (matéria escura fria, não relativística) ou se há discrepâncias que apontem, por exemplo, para interações ou propriedades não consideradas.
A cosmologia moderna apóia-se em um modelo chamado Lambda-CDM, que assume uma constante cosmológica (Λ) como energia escura e matéria escura fria (Cold Dark Matter) para explicar a formação das galáxias. Esse modelo vem tendo sucesso em muitas frentes, mas ainda carece de confirmação direta desses componentes exóticos. Missões como o Euclid são essenciais para validar ou desafiar esse modelo em diferentes escalas. Se os dados do Euclid concordarem com as previsões de ΛCDM, será um triunfo notável – confirmando com detalhes sem precedentes a imagem de um universo dominado pela matéria escura e energia escura. Por outro lado, qualquer desvio sutil nas medições de lenteamento ou clustering de galáxias em relação às expectativas pode revelar novos fenômenos físicos. Por exemplo, variações inesperadas na estrutura do cosmic web poderiam indicar que a energia escura não é totalmente constante ou que a matéria escura possui alguma propriedade incomum (como um caráter mais “morno” ou interativo). Em qualquer dos casos, o Euclid proporcionará dados valiosos para a próxima geração de estudos cosmológicos.
Conclusão: um novo atlas cósmico em construção
A primeira liberação de dados do telescópio Euclid nos dá apenas um gostinho inicial do poder dessa missão, mas já deixa claro que estamos diante de uma revolução observacional em cosmologia. Em questão de meses, o “detetive do universo escuro” mapeou dezenas de milhões de galáxias, identificou centenas de novas lentes gravitacionais e demonstrou que sua combinação de cobertura de céu e resolução óptica é verdadeiramente inédita. “O Euclid é uma mina de ouro de dados e seu impacto será de longo alcance, desde estudos de evolução das galáxias até os grandes objetivos cosmológicos da missão”, nas palavras da cientista Clotilde Laigle, do Instituto de Astrofísica de Paris (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields). E tudo isso com menos de 1% dos dados finais – ou seja, ainda há muito por vir.
Nos próximos anos, o consórcio Euclid continuará liberando dados maiores e mais aprofundados. A primeira grande liberação cosmológica está prevista para 2026, cobrindo uma área ~30 vezes maior que a divulgada agora e incluindo múltiplas passagens pelos campos profundos (Euclid mission data release is step toward grand atlas of the cosmos | Reuters). Cada novo conjunto de dados permitirá refinamentos nas análises e, possivelmente, novas descobertas inesperadas. A comunidade astronômica mundial está se preparando: grupos de cientistas já trabalham no desenvolvimento de algoritmos e modelos teóricos para aproveitar essa enxurrada de informações. A colaboração entre humanos e inteligência artificial, como vimos com o Zoobot, será cada vez mais essencial para navegar nesse oceano de galáxias (Astronomers just found a new treasure trove of galaxies. They could help answer our biggest questions.) (Astronomers just found a new treasure trove of galaxies. They could help answer our biggest questions.).
O legado do Euclid certamente se estenderá além de sua própria missão. Os conhecimentos e técnicas gerados influenciarão outros projetos – por exemplo, o futuro Telescópio Espacial Nancy Grace Roman (da NASA, previsto para ser lançado em meados de 2027) terá objetivos complementares de estudar energia escura e poderá se apoiar nas descobertas e metodologia pavimentadas pelo Euclid (First Science Images Released From ESA Mission With NASA Contributions | NASA Jet Propulsion Laboratory (JPL)). De fato, Nicola Fox, administradora da diretoria de ciência da NASA, afirmou: “Juntos, NASA e ESA estão abrindo caminho para uma nova era da cosmologia… o Roman irá construir sobre o que o Euclid aprender” (First Science Images Released From ESA Mission With NASA Contributions | NASA Jet Propulsion Laboratory (JPL)). Essa sinergia internacional ressalta que desvendar os segredos do universo escuro é um empreendimento global, unindo agências e cientistas de diversos países em prol de um objetivo comum.
Em suma, o telescópio Euclid já cumpriu a promessa de ser uma máquina de descobertas. Ao explorar os campos profundos do universo, ele nos leva em uma jornada de volta aos primórdios cósmicos, ao mesmo tempo em que fornece ferramentas para entender o futuro da expansão universal. Cada galáxia catalogada, cada lente gravitacional identificada, cada fio da teia cósmica mapeado são peças de um quebra-cabeça maior – o de compreender de que é feito e como funciona o nosso universo. Estamos testemunhando o início da construção de um grande atlas cósmico em alta definição, cujas páginas revelarão, com detalhes sem precedentes, como 14 bilhões de anos de evolução desenharam o céu que vemos hoje. E, quem sabe, nas entrelinhas desses mapas estelares, possamos encontrar pistas definitivas sobre a natureza da matéria escura, da energia escura e das leis fundamentais que governam a cosmologia. O baú de dados foi aberto; cabe agora à curiosidade humana explorar esse tesouro científico pelas próximas décadas.
Links recomendados e referências oficiais: Para os interessados em se aprofundar, a ESA disponibilizou as imagens de prévia dos campos profundos (veja no ESASky os campos Norte, Sul e Fornax) e um comunicado oficial completo no site da ESA detalhando a primeira liberação de dados (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields) (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields). O Consórcio Euclid também publicou uma série de artigos científicos em pré-print relacionados a esses resultados iniciais (ESA – Euclid opens data treasure trove, offers glimpse of deep fields). Esses recursos oferecem informações técnicas adicionais e complementam a contextualização apresentada neste artigo, evidenciando a importância dessa missão para a astronomia e cosmologia contemporânea.
Fonte:
O post Revelado O Primeiro Pacote de Dados da Missão Euclid apareceu primeiro em SPACE TODAY – NASA, Space X, Exploração Espacial e Notícias Astronômicas em Português.
Artigo original:
spacetoday.com.br