Quando os caçadores-coletores Khoiszn da África subsaariana contemplaram a trilha sinuosa de estrelas e poeira que dividia o céu noturno, eles viram ali as brasas incandescentes de uma fogueira.
Quando os marinheiros polinésios olharam para o céu eles viram um tubarão comedor de nuvens.
E quando os gregos antigos contemplaram o céu eles viram o fluxo de leite derramado, e daí viria o termo moderno usado para designar a nossa galáxia, Via Láctea.
No século 20, os astrônomos descobriram que o nosso rio prateado era na verdade um pequeno pedaço de uma vasta ilha de estrelas e puderam então escrever a história da sua origem.
Falando de maneira simples, a nossa galáxia, a Via Láctea se formou a aproximadamente 14 bilhões de anos atrás, quando enormes nuvens de poeira e gás coalesceram sob a força da gravidade.
Com o passar do tempo, duas grandes estruturas emergiram, primeiro um vasto halo esférico, e depois um disco denso e brilhante.
Bilhões de anos depois disso, o nosso Sistema Solar surgiu dentro desse disco, assim, o quando olhamos para o céu noturno e vemos todo aquele leite derramado, o que estamos tendo na verdade é uma visão lateral do disco da galáxia espalhado no céu.
Durante quase todo o século 20 e começo do século 21 a nossa visão sobre a Via Láctea não mudou muito, mas nos últimos 2 anos, os astrônomos conseguiram praticamente reescrever cada capítulo da história da Via Láctea.
O que aconteceu? É bem simples na verdade, hoje os astrônomos têm mais dados e dados melhores sobre a nossa galáxia.
Essa história começou a mudar no dia 25 de abril de 2018, nesse dia os responsáveis pela missão da sonda europeia Gaia lançavam uma grande quantidade de informações sobre a nossa galáxia.
Os dados da missão Gaia descrevem em detalhe o movimento, e a posição precisa de aproximadamente 1 bilhão de estrelas. Só para se ter uma ideia, as missões anteriores conseguiam mapear somente a ordem de grandeza de milhares de estrelas.
Os dados da missão Gaia deram uma nova vida à nossa galáxia, os astrônomos concordam em dizer que os dados da missão Gaia começaram uma verdadeira revolução sobre o nosso entendimento com relação à Via Láctea.
Os astrônomos então mergulharam de cabeça na quantidade imensa de dados e as descobertas começaram a surgir nos dando outra visão sobre a nossa galáxia.
Eles descobriram épicas colisões que moldaram a violenta juventude da galáxia, bem como novos sinais que a galáxia continua agitada de uma forma inesperada.
Quando integrados esses resultados contam uma nova história sobre o passado turbulento da galáxia e como ela irá evoluir no futuro, com isso a nossa imagem sobre a Via Láctea mudou rapidamente.
O principal ponto é que a galáxia não é um objeto estático, as coisas mudam rapidamente em todos os lugares.
PAUSA SOBE MÚSICA
Para espirar os primeiros dias de vida da galáxia, os astrônomos procuraram por estrelas bem antigas. Essas estrelas formadas só por hidrogênio e hélio, os materiais mais brutos do cosmos poderiam contar essa história.
Felizmente, quanto menor uma estrela é, ela queima seu combustível mais lentamente, então muitas delas ainda brilham e podem ser estudadas.
Depois de décadas de busca, os pesquisadores conseguiram juntar um catálogo com 42 dessas estrelas bem antigas, e na astronomia, quando uma estrela é antiga e só tem hidrogênio e hélio ela é chamada de uma estrela pobre em metais.
Essas estrelas bem antigas deveriam estar no halo da galáxia, que foi a primeira parte a ser formada, as estrelas do disco, que levou mais alguns bilhões de anos para se formar, já estariam contaminadas com elementos mais pesados como carbono e oxigênio.
Assim, no final de 2017, um estudo mostrou como essas estrelas pobre em metal se movem e com isso foi possível ter um código já escrito para poder analisar os dados da missão Gaia.
A trajetória dessas estrelas poderia oferecer pistas sobre como seria o halo da galáxia e como ele se formou.
Então, em 2018 com os dados da missão Gaia, as 42 antigas estrelas identificadas foram tiradas dos dados e seus movimentos foram estudados em detalhe.
Os pesquisadores encontraram que a maior parte delas realmente vagavam pelo halo, como era previsto. Mas algumas, na verdade 1 em 4, não.
Essas apareciam presas no disco galáctico, a região mais nova da galáxia, mas como isso poderia acontecer?
Estudos posteriores confirmaram que essas estrelas realmente residiam no disco da galáxia, e não eram apenas turistas de passagem por ali.
Dois estudos recentes subiram esse catálogo de 42 para 5000 estrelas e centenas delas estariam de forma permanente no disco da galáxia.
Mais dois estudos foram importantes, um deles identificou que 1 em cada 10 estrelas estariam no disco e outro estudo descobriu estrelas de diferente metalicidade, ou seja, diferente idade, se movendo em órbitas no disco.
Isso era algo completamente novo.
Como isso podia ter acontecido? Os pesquisadores começaram a especular, que talvez pacotes de gás bem primitivo formaram estrelas bem antigamente no disco, ou que o disco pode ter começado a tomar forma quando o halo também começou, ou seja, 1 bilhão de anos antes do que se pensava.
Para descobrir qual a hipótese mais provável foram então rodadas simulações para entender como a galáxia se formou.
Com os dados da missão Gaia, as simulações ficaram precisas o suficiente para se poder ter uma ideia do que aconteceu com a Via Láctea.
Depois de 3 meses de simulações rodando no Centro de Supercomputação de Leibniz na Alemanha, e repetindo o exercício 6 vezes veio a resposta.
Das seis simulações, duas delas produziram um grande número de estrelas com baixa metalicidade.
E como essas estrelas foram parar ali?
Tentando explicar de forma simples, elas eram imigrantes estelares. Algumas delas nasceram em nuvens que foram consumidas pela Via Láctea.
Então as nuvens depositaram algumas dessas estrelas em órbitas que formaram parte do disco da galáxia.
Outras estrelas vieram de pequenas galáxias anãs que se fundiram com a Via Láctea e se alinharam quando o disco surgiu.
Esses resultados mostraram que os modelos clássicos de formação de galáxias estavam incompletos.
Nuvens de gás colapsaram em halos esféricos, como se esperava, mas as estrelas que chegavam num determinado ângulo poderiam ter entrado e começado a formar o disco ao mesmo tempo.
Os teóricos estavam errados, eles tinham perdido parte da história da formação da Via Láctea.
PAUSA SOBE MÚSICA
A complicação sobre a história da Via Láctea não para por aí. Com a missão Gaia, os astrônomos encontraram evidências diretas de colisões cataclísmicas.
Os astrônomos já assumiam que a Via Láctea teria tido uma juventude agitada, mas com os dados da missão Gaia, eles puderam determinar detritos específicos de algumas das maiores fusões pela qual a galáxia passou.
A liberação de dados em 2018, aconteceu numa quarta-feira, e a expectativa dos astrônomos era tão grande, e a vontade de trabalhar com os dados tão voraz que o site caiu.
Alguns astrônomos processaram os dados na quinta-feira, e na sexta eles já sabiam que tinha algo muito grande ali naqueles dados.
Em todas as direções que se olhava, era possível ver um grande número de estrelas do halo galáctico girando pra frente e para trás da mesma maneira peculiar, uma pista que elas tinham vindo de uma única galáxia anã.
Já no domingo, os astrônomos tinham um artigo científico pronto com os resultados preliminares e depois disso começaram a aprofundar nas análises.
Os destroços galácticos estavam por toda a parte. Talvez metade de todas as estrelas dentro de 60 mil anos-luz interno ao halo, com um raio de centenas de milhares de anos-luz vieram de uma única colisão.
Essa colisão gigantesca pode ter feito a Via Láctea crescer em massa cerca de 10%, isso mudou o jogo sobre a evolução da Via Láctea, já que muitos astrônomos esperavam na verdade encontrar muitos pequenos pedaços diferentes e não uma grande colisão como essa.
Uma simulação mostrou que a formação e a evolução da Via Láctea durou cerca de 10 bilhões de anos. Nesse período muitas galáxias anãs menores agregaram material para a galáxia principal tornando-se parte dela.
Mas essa gigantesca colisão foi marcante, os astrônomos deram a essa galáxia o nome de Gaia-Encélado, em homenagem a deusa grega Gaia, uma das divindades primordiais, e ao seu filho Encélado.
Não foi só um grupo de astrônomos que descobriu essa gigantesca colisão, outro grupo também descobriu e deu o nome para ela de Galáxia da Salsicha devido à sua aparência.
Quando a Via Láctea e a Gaia-Encélado colidiram talvez a 10 bilhões de anos atrás, o delicado disco da Via Láctea pode ter sofrido uma grande dano generalizado.
Os astrônomos debatem porque o nosso disco galáctico parece ter duas partes, uma parte mais fina e uma parte mais espessa onde as estrelas pulam de cima para baixo enquanto orbitam o centro da galáxia.
Os astrônomos sugerem que a Gaia-Encélado explodiu a maior parte do disco estufando-o durante a colisão.
O primeiro disco antigo se formou rapidamente, e então a Gaia-Encélado o destruiu.
Pistas de fusões adicionais foram registradas nos chamados aglomerados globulares da galáxia.
Astrônomos usaram simulações da galáxia para treinar uma rede neural que ajudou a pesquisar os aglomerados globulares.
Com isso foi possível estudar as idades, a constituição e as órbitas desses objetos. A partir desses dados, a rede neural pôde reconstruir as colisões que acabaram construindo as galáxias.
Com esse algoritmo bem treinado foi hora de colocar ele para trabalhar num dado real da Via Láctea, o código conseguiu reconstruir eventos como a Gaia-Encélado, bem como uma fusão mais antiga e mais significante, que os astrônomos deram o nome de Kraken.
Os astrônomos conseguiram definir como se fosse uma linhagem de fusões que aconteceram com a Via Láctea, e as galáxias anãs que foram formadas.
Com isso eles identificaram 10 colisões adicionais que esperam sejam confirmadas por observações subsequentes.
Todas essas fusões e colisões levaram os astrônomos a sugerir que o halo pode ser feito quase que exclusivamente de estrelas imigrantes.
Modelos da década de 1960 e 1970, previam que a maior parte das estrelas do halo galáctico tinham sido formadas ali, mas à medida que mais e mais estrelas têm sido identificadas, como sendo de galáxias que colidiram com a Via Láctea, pode-se assumir que poucas estrelas ali, são nativas daquele lugar.
PAUSA SOBE MUSICA
Após esse passado agitado, a Via Láctea tem passado por um momento mais tranquilo nas eras recentes, mas mesmo assim alguns novos visitantes continuam chegando.
Os observadores do hemisfério sul da Terra, podem ver a olho nu, em condições ideais uma par de galáxias anãs chamadas de Grande e Pequena Nuvem de Magalhães.
Os astrônomos acreditam a muito tempo que o par de pequenas galáxias orbitam a nossa galáxia como luas orbitando planetas.
Então entre 2006 e 2013, uma série de imagens feitas pelo Telescópio Espacial Hubble descobriu que elas estão mais para asteroides que caem na Terra, do que para uma Lua na nossa órbita.
Os astrônomos calcularam que as nuvens estão vindo na nossa direção a uma velocidade de 330 km/s, quase que o dobro da velocidade que foi prevista anteriormente.
Além da velocidade ter surpreendido os astrônomos, outra propriedade também surpreendeu, a massa, os astrônomos concluíram que as nuvens de Magalhães são 10 vezes mais pesadas do que se pensava anteriormente.
E com essa massa, vários grupos de astrônomos começaram a estudar os efeitos das galáxias anãs e descobriram que essas galáxias anãs podem estar arrastando partes da Via Láctea.
O problema de fazer esse estudo, é que nós estamos dentro da Via Láctea, nos movimentando e com um monte de coisa na frente para atrapalhar.
Os astrônomos passam então a maior parte do tempo processando os dados tentando eliminar esses efeitos e quando conseguiram fazer isso eles descobriram algo bem interessante.
A Terra, o Sol e o resto do disco da Via Láctea está vagando em uma direção e não na direção da Grande Nuvem de Magalhães, mas sim em direção a uma posição que era ocupada por ela a cerca de 1 bilhão de anos atrás.
É como se a Via Láctea tivesse um reflexo retardado, muito disso devido ao seu tamanho.
O fato do disco da Via Láctea estar deslizando contra o halo, acaba com uma premissa fundamental sobre a nossa galáxia.
Os astrônomos sempre assumiram que mesmo depois girar, deslizar, depois de bilhões e bilhões de anos, o disco maduro e o halo da galáxia estariam numa configuração estável, a premissa que sempre foi usada é que a Via Láctea era um objeto em equilíbrio.
Mas as análises atuais feitas mostram que essa premissa está errada.
Mesmo depois de 14 bilhões de anos, as fusões continuam esculpindo a forma geral da galáxia, o que vemos hoje na verdade é só a última mudança que aconteceu.
O mais importante é, tudo que se sabia sobre o futuro e sobre a história da Via Láctea, precisa ser reescrito, em termos astronômicos isso quer dizer que precisamos de novos modelos para descrever a nossa galáxia, e essa visão tende a mudar quando a missão Gaia completar o seu trabalho.
Quanto mais estrelas são estudadas, quanto mais simulações são criadas, mais aprendemos sobre a origem, a evolução e o destino da Via Láctea.
Fonte:
https://www.quantamagazine.org/the-new-history-of-the-milky-way-20201215/
Artigo original:
spacetoday.com.br