Era novembro de 2020 quando foram anunciadas as novas séries de Star Wars com foco maior no streaming e nem sinal de que estaríamos hoje assistindo ao primeiro episódio de O Livro de Boba Fett. Só tivemos essa certeza quando terminamos o último episódio da segunda temporada de The Mandalorian na primeira quinzena de dezembro do ano passado. Ainda de forma incontível da emoção de termos visto Luke buscar o jovem Grogu em um cruzador Imperial, os fãs quando voltaram a si, foram pegos de surpresa com o anúncio da sonhada série que chega para fazer parte do que chamamos de “Mandoverse”.
Se voltarmos em 2015, quando na Celebration foram anunciados, além dos filmes numerais, os spin-off de Rogue One e Solo, ambos com subtítulo de “Uma história Star Wars”. imediatamente os fãs acompanharam a lógica de que, a cada filme numeral, viria no intervalo de cada um, mais um spin-off de histórias de um mundo compartilhado. Dentro das especulações que os fãs arriscaram fazer, as mais pedidas foram Obi Wan e Boba Fett hoje são certezas de produtos que tem um risco menor de flopar sem depender de bilheteria. E a gratidão se torna maior quando lembramos que, além destas duas, outras nove foram anunciadas. Duas delas, The Bad Batch aguarda sua continuação e Visions já ficou pra trás alvoroçando entusiastas e curiosos e até haters. Uma entrou num estado de congelamento, Rangers Of The New Republic, e três podem ser entregues no próximo ano: Andor, Obi-Wan e a terceira temporada de The Mandalorian.
Esse misto de expectativa e surpresa que a série de Boba Fett ganhou está totalmente ligado ao fato de que o personagem sempre foi cultuado e só havia ganhado os holofotes nas mídias mais baratas como quadrinhos e livros. E sabemos, os fãs do personagem não se decepcionaram com tais mídias. Quando o personagem finalmente ganha o que chamamos de mídia mãe, ou seja, uma obra audiovisual, precisamos estar atentos a alguns elementos que ajudam o fã a ter pés no chão pra entender que momento a série chega e que momento vivemos hoje no mundo do entretenimento.
As Camadas da Vilania
Star Wars por muito tempo carregou em sua narrativa parte do maniqueísmo da dualidade ou binarismo das forças que regem o mundo: o bem contra o mal.
Não havia espaço para observarmos vilões, pois o papel deles sempre foi o de antagonista da história, do personagem que usará de seus esforços para impedir que o herói salvasse o dia. Até que a major do entretenimento teve um papel interessante na observação do mundo: vilões de seus desenhos clássicos pararam de ter aparência ruim, começamos a conhecer o outro ponto de vista que nunca tivemos acesso e assim filmes como Malévola e Cruela começaram a ganhar espaço na cultura pop.
Entramos num mundo complexo que agora dá ouvidos e vozes para personagens que nunca puderam se manifestar por conta das réguas morais que regem a sociedade. Sendo assim, este rebranding de personagens não apenas ganharam seu espaço, eles em algum momento viraram a chave para que pelo menos os interessados sejam levados em qual história o personagem tem a nos contar.
Se lá em 2015 o rumor de que poderia existir um filme do Boba Fett entre os spin-off era algo remoto na lógica do mercado, parece que os criadores do “Mandoverse” conseguiram ter um ponto a favor dessa possibilidade pela série de The Mandalorian deram a sobrevida ao personagem que supostamente estava morto desde o começo de O Retorno de Jedi. Ainda que as histórias Legends do universo expandido já haviam nos trazido a essa realidade, desde o novo cânon a dúvida pairava no ar e para os criadores o caminho nem foi tão difícil.
O Ventre da Baleia
Não é novidade ao fã de Star Wars que mesmo sem a presença de George Lucas, a fórmula de sucesso da jornada do herói, do monomito e outras histórias que ajudam na construção de uma jornada de protagonista, alguns elementos sejam essenciais para que quando a gente assista a uma obra, compre a premissa do personagem.
De todas as etapas que fazem parte dos degraus que um herói deve subir para conquistar seu espaço, a mais valiosa é sem dúvida a etapa que chamamos de “O ventre da baleia”. Nessa fase, o protagonista da história está no ponto mais baixo de sua trajetória: fraco, isolado, deslocado e sem ferramentas que o ajudem a superar e evoluir. Esse é o coração da motivação de personagens em todas histórias que sejam contadas porque é nesse momento que as motivações pesam para que ele saia dessa espécie de fundo do poço e se torne o agente de sua mudança. Em toda obra que você puder localizar esse período de ventre da baleia, o personagem é um antes dela e outro personagem transformado depois dela.
Pronto. pode começar do zero porque aquele seu eu você não reconhece mais, você deixou pra trás para se tornar um novo homem, uma nova mulher.
Mas que maravilha, não? O vilão amado por muitos e cultuado por conta de seu visual intrigante está sendo reaproveitado com pelo menos um recorte de pelo menos um pouco menos que a metade de sua jornada. Uma sacada de mestre você dar sobrevida ao vilão, virar a chave dele e mostrar um Boba Fett cansado de guerras, de mortes e trazer uma nova motivação ao personagem.
Isso vem a calhar para uma empresa de entretenimento que sabe que o personagem venderia, mas que precisaria dessa mudança para que ele estivesse em uma série que seria assistida por toda família sem as dificuldades da régua moral.
Jon Favreau, quando deu o personagem de Boba Fett de presente para um dos diretores mais despojados de Hollywood, o entregou semi-pronto.
O tempo presente
A série se inicia com a sala do trono vazia e as memórias de Boba, desde sua concepção ao primeiro golpe: a perda com a morte de seu progenitor clônico na arena de Geonosis até o despertar de dentro do estômago de Sarlacc. Aqui o momento de fuga pedia uma sequência rápida, pessoal e de maneira que colocasse o espectador na mesma sensação do personagem, não à toa um dos momentos dessa sequência, a câmera assume o papel dos olhos de Fett de dentro do capacete.
Se a premissa de que o mais importante não é a chegada, mas a jornada, aqui peço permissão para mostrar qual é a importância maior deste momento mais esperado: melhor do que saber como Boba Fett sobreviveu à Sarlacc, é como ele se manteve assim que saiu. Estas questões da história são mais importantes para o que se lapida de um novo personagem, deste novo renascimento, desta segunda chance que o personagem ganha.
De depenado pelas pequenas mãos furtivas dos Jawas (nada escapa destas pequenas ambições) ao cativeiro aberto aos sóis duplos de Tatooine dos Tusken, nosso protagonista só abre a boca nos quase 10 minutos de série, lembrando de um dos momentos mais marcantes de filmes áridos como Sangue Negro (2007), de Paul Thomas Anderson.
A relação de prisioneiro aqui vai ser parte predominante e de elo com as promessas do Boba com o presente momento da série.
O tempo presente
Boba é acordado do tanque de bacta por Fenec Shand e assim já nos traz uma realidade que permanece, está debilitado.
Seus próximos momentos são imersos na familiarização de qual realidade vive: Tatooine e sua intensa relação com mafiosos. Star Wars está, depois de 45 anos de vida, aprendendo agora a viver em uma realidade sem Jedi ou Sith. Portanto, o que vai trazer ameaça iminente ao protagonista é uma realidade que permeou toda sua vida no universo expandido: as máfias, os sindicatos de crime e sua relação com as facções.
Depois de dois personagens que carregam sobrenomes, algo muito usual em filmes de máfia, chegam os vassalos acorrentados que ouvem de seu senhor: “Eu Não Torturo”.
Boba já demonstra aqui que seus momentos de cativeiro o trouxeram uma nova forma de ver o mundo. Um mundo tão estranho que quem faz o papel de interlocutor com o tempo presente é a sua assassina da dívida de vida. Por muito tempo, Boba Fett era considerado o rival de Han Solo. Nasce aqui uma rima visual bem apropriada: assim como Solo tem um Wookie com a dívida de vida, Boba agora tem sua assassina pessoal que não apenas o protege, mas carrega a missão de fazê-lo entender que os tempos mudaram, mas nunca desobedecendo as escolhas do novo “Daymio”.
A primeira demonstração amarga dos tempos que mudaram é um ataque recebido por uma facção minutos depois quando professou trocar o medo pelo respeito.
Em uma sequência de ação antiquada (aqui, Rodriguez dirigiu a sequência aos moldes de antigos filmes, fugindo dos novos padrões de ação asiático com câmeras em constante movimento), Boba e Fennec tem o dia salvo por dois gamorreanos de sunga. Momento brega e típico do universo inesperado de filmes Naif que Rodriguez engorda em seu repertório. O timing da ação é salvo pela “desintegração” de um vilão e a sequência de Parkour feito pela personagem de Fennec que obedece às ordens do patrão mantendo “uma testemunha viva”.
De volta ao bacta e de volta às memórias, Boba e o Rodiano são levados pela criança tusken a conhecerem uma das ameaças recorrentes que a região enfrenta: o aumento das ameaças por uma gangue de speedbikers, nos trazendo um reflexo da memória dos fatos que aterrorizaram Luke no retorno de sua casa para descobrir que sua jornada não teria mais volta: o espelho das situações mostra que a vida de Boba também estava prestes a mudar: ao salvar o garoto tusken de uma criatura que parecia uma mistura dos monstros dos filmes de Ray Harryhausen (uma homenagem clara), o retorno do garoto para tribo fez com que o prisioneiro ganhasse aquilo que faria sentido no tempo presente: a conquista pelo respeito e não pelo medo.
É o respeito que Boba ganha desta diferente tribo tusken quando finalmente ganha em suas mãos e de forma respeitosa, a água que tanto lhe fez falta durante toda jornada deste novo renascimento.
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Atenciosamente,
Prof.º Me. Vebis Jr
Mestre em Cinema
Especialista em Comunicação
Graduado em Audiovisual e Multimídia
“O Cinema é um campo de batalha” – Samuel Fuller
Artigo original:
sociedadejedi.com.br