Não é novidade que muitas essências dos grandes diretores estão nas obras de George Lucas. Toda o conjunto de diretores da Nova Hollywood tem uma formação que no começo de carreira reverencia outros grandes mestres do cinema. Quem aqui não se sentiu da angústia hitchcockiana ao ver uma obra de Brian De Palma como Vestida para Matar (1980) ou Dublê de Corpo (1984)? Ou o grande professoral Martin Scorsese homenagear John Cassavetes em filmes como Quem Bate à minha Porta (1967) ou Caminhos Perigosos (1973). Lucas, dentre essa turma inteira, era o mais plural no consumo de diretores do mundo todo, pois era cinéfilo, conhecia obras que poucos diretores ali conheciam. Por isso vemos um padrão nerd na postura quase caricata que tinha em imagens de making of dos filmes.
Eram filmes de capa e espada, séries de sci-fi da década de 1950 e 1960, filmes de samurai de Akira Kurosawa, faroestes marcantes que fizeram a época de ouro de Hollywood, e claro, a formação de filmes de horror e o ensino de Roger Corman, que influenciou muito seu cinema artesanal.
Jon Favreau e Dave Filoni parecem que sabem bem como olhar uma obra audiovisual com os olhos de George Lucas, mas apenas com um diferencial de que eles parecem melhor preparados para direção do que Lucas esteve em sua vida de diretor. Favreau, como dissemos na crítica do primeiro episódio, tem um traquejo maior para dirigir atores. Filoni sabe muito bem como criar materiais que cruzem midiaticamente a obra sem agredir muito as histórias canônicas. Pronto, o erro que muita gente pegava no pé, de que George Lucas não sabia dirigir atores, fato consumado quando lemos seus depoimentos e entrevistas em que afirma ter mais aptidão pra ser montador e que só encarou a direção porque não tinha maluco corajoso o suficiente pra dirigir lá pro final de 1970.
Esse reparo histórico é tão visível que um personagem como o Mandaloriano vivido pelo ator Pedro Pascal, mesmo com capacete e sem muitas expressões, o corpo falou o suficiente pra que o contrato do ator que atua convença a nós que assistimos.
Chegamos ao segundo episódio intitulado A Criança. Seu formato que, como não faz parte de um quadro de programação de TV, se apresenta disforme ao primeiro contendo apenas 33 minutos. A direção vem do cineasta indie Rick Famuyiwa, famoso por seus filmes pra cinema e TV com fortes traços do cinema negro e etnográfico.
Aos atentos para o universo pop, o começo deste episódio é quase uma pintura de um dos mangás mais populares no Japão, O Lobo Solitário (1970-1976). Tantas vezes homenageado por outros quadrinistas como o próprio Frank Miller em Ronin, a imagem repleta de peso estético mostra o guerreiro caminhando e um berço com uma criança acompanhando. Nos quadrinhos de Kazuo Koike e Goseki Kojima, o shogun caminhava em silêncio de sua desonra de falsas acusações carregando o berço com sua criança de 3 anos e que só deixava o berço parado quando duelava durante seu trajeto.
Aqui, o Mandaloriano segue friamente pelos cânions junto ao berço flutuante e o acompanhamento de lagartos que fazem escolta ao jovem bebê alienígena. Aos atentos que percorrem o close quarter (uma maneira inteligente de se ocupar os quatro cantos da tela de cinema com alguma ação dramática) da belíssima tela de plano aberto, notaria que o guerreiro para de caminhar. Súbito uma sombra que se move na profundidade de campo do plano, onde geram as sombras superiores da garganta do cânion, nos leva a um belo plano fechado em seu rosto que atento ao que ocorre fora do quadro de cinema e do plano detalhe de sua mão quase sacando a pistola, seja surpreendido por três tandroshanos que covardemente o atacam. Dá tempo de ver em plano detalhe um sinalizador no braço do tandroshano piscar. É MAIS UM CAÇADOR CONTRATADO! Talvez aqueles na cantina que notaram seu novo contrato pelas mãos de Greef Carga (Carl Wheaters). Mesmo que tenha dado conta dos três, um deles corre em direção com a mesma missão de IG-11, exterminar o bebê e é bruscamente interrompido por uma fama mandaloriana conhecida até por Vader no Episódio V quando ordena ao Fett “sem desintegrações” .
Os créditos sobem ao som de mais uma trilha tribalística. Finalmente volta para sua nave Razor Crest, quando a encontra depenada pelos jawas. O protagonista se dá conta que deve correr atrás do Sandcrawler, a fortaleza dos jawas, dando início a uma das melhores partes do capítulo nessa união de trilha sonora e montagem de ação a ponto de nos remeter e homenagear até a sequência do tanque de guerra de Indiana Jones. Ao subir as paredes da fortaleza com a corda, há uma rima visual que quer contar com nossa memória das paredes da fortaleza de Jabba quando vemos o último voo de Boba Fett. Nossa memória emotiva vai buscar a semelhança lá atrás até chegar ao nível do caçador alcançar o topo e ser alvejado com a mesma arma que outrora atingiu o R2-D2 e assim, depois de vermos o androide tombar, agora vemos um mandaloriano em queda livre. Ao despertar, mais situações visuais nos alimentam de informação do que se explica. Descobrimos o modo “Rambo-mandaloriano” de cauterizações de cortes, vemos o que existe por trás das armaduras mandalorianas e nos sobra até tempo de prever o que o “baby Yoda” tenta fazer, mas o mandaloriano não sabe, apenas nós espectadores sabemos.
A construção do personagem preparado para todas as batalhas se dissolve nesta sequência: o bravo guerreiro volta ao amigo Kuill para pedir ajuda. Convenhamos, estamos tendo a chance de reconhecer a força e a fraqueza de um protagonista que no universo de Star Wars tem o peso de um espartano. Agora vemos o guerreiro com o rabo entre as pernas e um berço flutuante pedindo ajuda ao interlocutor que vai dialogar com jawas e segurar os impulsos do Mandaloriano que parecia estar impaciente com a situação que caiu. Não existe força bruta que supere a necessidade de se adequar às necessidades locais.
Tal qual um dialogo tribal onde todos sentados tentam chegar num acordo mediante um juiz, o Mandaloriano é convocado para seu julgamento, e aqui, meu amigo, partimos para uma das estruturas mais comuns dentro da saga Star Wars e por consequência da jornada do herói, que no nosso caso, é a jornada de um caçador. O tal ovo que os jawas querem fazem com que o guerreiro tenha de entrar onde?
Oras, no que mais faz com que os personagens de Star Wars se reconhecerem um antes e um depois: A ENTRADA DE UMA CAVERNA. A caverna, tal qual a barriga da baleia para Jonas, é o ritual do amadurecimento do personagem.
O consórcio entre cavernas e Star Wars já passaram dos 40 anos de parceria e ela não falha uma vez sequer.
Despertado o rinoceronte alienígena, mesmo com uma armadura, os arremessos do personagem na lama são o verdadeiro trial que qualquer um jamais esqueceria. A interação de humanos com criaturas com força bruta nos marcou muito na saga. Seja Luke enfrentando Wampas e Rancors, seja os Jedi das prequels na arena de Geonosis ou sendo hostilizados em planetas em que os Jedi iam libertar dos separatistas nas animações.
Quando finalmente com muita dificuldade, o Mandaloriano se levanta em seu último ato de bravura com a única arma que lhe restou é chegada a hora do bebê manifestar seu poder que muitos desconfiavam nas sequências anteriores. O caçador nota de onde veio o poder e espeta sua faca no ponto vital da criatura e volta com o ovo aos jawas segurando fragmentos de sua armadura que se espalharam pela lama e para sua nave.
Mais uma vez estabelece no ato da reconstrução da nave, a cada peça montada naquela virada de noite, uma cumplicidade com um personagem que apenas queria ver de perto um raro mandaloriano, mesmo que desacreditado pelos tombos que tomou num planeta não familiarizado. O diálogo em que Kuill nega o convite de co-piloto carrega uma ressentimento grande e sutil sobre se livrar da servidão numa era da queda do império, que subentenda-se que a presença de um mandaloriano, ainda que involuntariamente movido por um contrato, limpou o vale que o velhinho vivia. Há muito deste quadro dramático nos filmes de faroeste. A chegada de um pistoleiro ou cowboy num vale implica na limpeza ou na sujeira de vez de pessoas que representem um obstáculo.
O faroeste no cinema sempre nos imergiu na ideia de que a
presença deles ou era prosperidade, ou era a chegada de novos inescrupulosos
que irão sugar todos os recursos locais de forma truculenta.
Talvez, um dos maiores trunfos que a série tem e que se espelha nos caminhos que George Lucas optou em seu primeiro filme de 1977 é o fato de tratar com o baixo clero, personagens caminhantes, camponeses, caçadores que dão o duro pra se manter mesmo com o risco de morte. Depois de tanto tempo escalonando histórias megalomaníacas ou de peso vital para o rumo da galáxia, a periferia espacial também está sendo observada com uma série de linguagem discreta, mas que o ganho nosso em termos um verdadeiro mandaloriano em ação traga a honra que poucos sabem que Boba e Jango não tiveram tempo de nos transmitir.
Por Prof.º Me. Vebis Jr
Mestre em Cinema
Especialista em Comunicação
Graduado em Audiovisual e Multimídia
Podcaster por prazer
Revisado por Alexandre Agassi
Estudante de Jornalismo
Cinéfilo nas horas vagas
Artigo original:
sociedadejedi.com.br